A Casa do Boneco de Itacaré é uma
entidade sem fins lucrativos que atua no sul e baixo-sul da Bahia desde 1987,
resistindo diariamente como povo preto desenvolvedor de programas de resgate
dos valores ancestrais africanos, dos povos indígenas, tradicionais e de
terreiro, traçando uma linha de desenvolvimento produtivo e sustentável. Entre
maio e junho de 2015 tivemos pela segunda vez a oportunidade de atravessar o
oceano rumo ao continente Mãe África para desfrutar desses valores e
compartilhar desses saberes com nossos irmãos da Guiné-Bissau, dos quais fomos
brutalmente separados pelo colonialismo escravagista. Esse reencontro é
necessário!
Através da experiência de troca numa
perspectiva pan-africanista com os povos guineenses, negamos o caráter
exploratório dos excursionistas que adentram à África para usufruir de suas riquezas
e disseminar uma imagem deturpada da mesma, reconfigurando o colonialismo na
atualidade, e nos comprometemos com a solidificação de um intercâmbio
verdadeiro e sincero acerca dos costumes, das tradições, dos desejos e das
lutas que constituem a razão de ser desses povos, dentre eles a defesa do não
derramamento de sangue.
Chegamos na Ilha de Bubaque (Arquipélago
Bolama Bijagós- Guiné Bissau) no dia 22 de maio e lá permanecemos por três
semanas afim de desenvolver as atividades previstas pelo intercâmbio, como a
realização das oficinas, apresentações artísticas, pesquisas e registro
audiovisual. Foram dias intensos de vivências e aprendizados, estreitando
relações com a comunidade e criando vínculos de parceria, amizade e colaboração
mútua, sendo ministradas 7 oficinas de capacitação (estética afro-brasileira e
guineense, artesanato, audiovisual, comunicação comunitária, capoeira angola,
dança e percussão afro-brasileiras) em torno das quais se mobilizou cerca de
140 jovens, crianças e adultos. Nesse convívio percebemos a unidade africana e
a consolidação de uma irmandade entre nós brasileiros e os guineenses, através
da identificação imediata para além dos laços sanguíneos, que certamente
possuímos, como saber? A paz e a tranquilidade vivida em Bubaque é um bem comum
que não será encontrado na representação midiática, cuja prática de exposição
da África é feita sempre com conotação mentirosa e tendenciosa de um povo
fraco, pobre e em guerras. Voltamos a dizer, é necessário atravessar o oceano,
mas atravessar limpo de vaidades.
Carregamos na bagagem nossa luta em
pauta, para mostrar para o mundo o motivo da nossa união e em prol do que
acreditamos, cada um leva em seu discurso os motivos dos quais o mantém vivo e
o peso do nosso grito. A simbólica bandeira da campanha REAJA OU SERÁ MORTO,
REAJA OU SERÁ MORTA levada pelo Mestre Jorge Rasta pendurada na sala da casa
onde moramos em Bubaque (no bairro de Buba, gentilmente cedida por Dona Regina)
chamava atenção dos que por ali transitavam. Tal curiosidade gerou diversos
djumbais (rodas de conversa) que possibilitaram uma explanação acerca da dolorosa
realidade de extermínio que a juventude negra vem sofrendo no Brasil. Os jovens
da Ilha de Bubaque custam a acreditar que diariamente o jovens negros são
assassinados na periferias brasileiras, visto que muitos deles só conhecem o
Brasil através do canal Record e os programas criminalescos sensacionalistas,
ou as novelas da Rede Globo cujo elenco majoritariamente branco encena a ‘‘realidade’’
do Brasil. Tendo contato com os dados do genocídio dos negros no Brasil, a
demonstração de solidariedade e apoio dos irmãos guineenses é imediata, diante
do relato crítico da condição de violência que a população afrodescendente está
sendo condicionada, e dessa forma os jovens de Bubaque realizam ato em apoio à
Campanha REAJA.
No dia 31 de maio nos reunimos com a
comunidade da Ilha para concentrar e fortalecer a luta pelo fim do extermínio
da população negra no Brasil. Foi um ato poderoso no antigo porto da
Guiné-Bissau, do ladinho das ruínas da antiga Casa de Luiz Cabral - uma das maiores personalidades políticas da Guiné-Bissau. Os tambores rufavam
em protesto ao sangue derramado dos que foram executados pela bala achada do
Estado brasileiro, os que foram eliminados pela briga por pequeno espaço que
nos ensinou apontar a arma para o nosso irmão preto, desde os tempos em que
colocavam um prato de comida para que disputássemos a fome. Nos dias de hoje o
jovem é obrigado à disputar a “boca de fumo”, o crack, a cocaína e todo o lixo
que criaram para acabar com a população preta.
Essa massa linda da “Guigui” que
gritou, cantou, sorriu e chorou com a gente, carrega uma história de
ensinamento e sabedoria de respeito dentro e fora do convívio social, deixando
para nós o aprendizado e a responsabilidade de não derramar uma gota de sangue
no solo que se vive. Desde muito pequeno é ensinando em terras guineenses,
entre os povos Bijagós, que um irmão jamais deve derramar sangue do outro.
Assim seguimos.
Queremos deixar escuro a nossa
resistência de caminhar ao lado de Hamilton, Andréia, Fred, Tony, Jamile, e
toda a galera que cola na corda do Reaja sem discurso vazio ou poucas palavras,
estamos aqui reafirmando o nosso compromisso real e intenso de seguir até o fim
reagindo contra todas as forças que querem de alguma forma calar as nossas
vozes. NÃO VÃO CONSEGUIR!
Nós somos frutos da resistência de
Zumbi, Gangazumba, Amílcar Cabral, Malcom-X, Dandara, Akotirene e todos os
Panteras Negras que encabeçam a nossa luta. A disposição aqui é a mesma para
além do estado e forças armadas. Agradecemos a todos da Ilha de Bubaque que
acreditaram em nossas vozes, em nossos compromissos, lutas, pensamentos e
causas e puderam juntamente construir esse ato entendendo a importância da luta
de se manter vivo e a resistência de perpetuar a história dos nossos
antepassados. O depoimento de cada um de vocês reverberou um fortalecimento na
caminhada e na postura enquanto homens e mulheres pret@s.
Obrigada Silvano, Julinho, Tony, Adão, Olga, Joaninha, Alçania, Luiz, Didi,
Isa, Tina, Hilário, Maio, Ovik, Nisio, Fanta, Tâmara, N'dingue, Lilica, Fátima,
Francilino, Ernestina, Totô, Eduardo, Cátia, Mira, Ulai, Erasmo e a todo povo
da Ilha de Bubaque que pigmentou intensamente a nossa luta com uma identificação
real com a proposta.
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