O diálogo cultural africano, travado na obra Kirikou e a Feiticeira, de Michel Ocelot, pode ser interpretado numa dimensão mais ampla, no tempo e no espaço, estendendo-se até nossos dias e a todos os continentes. Nas personagens principais, podemos observar as conseqüências dos atos masculinos incutidos nas mulheres. Temos duas visões divergentes (da mãe de Kirikou e da feiticeira Karabá) que, porém, apontam para o mesmo objetivo: a afirmação feminina enquanto indivíduo livre e independente.
Considerando a visão de Michelle Perrot, em sua obra “Les femmes et les silences de l’Histoire”[1], observamos que a História das mulheres foi sempre contada sob o ponto de vista do homem. O que se tem de menos influenciada é a oralidade privada, domínio em que as mulheres sempre puderam interferir e o fizeram de maneira marcante junto aos filhos e às crianças em geral[2]. “A memória das mulheres é verbo. Ela está ligada à oralidade das sociedades tradicionais que lhes confiavam a missão de narradoras da comunidade do vilarejo.” (PERROT, 1998, p. 17).[3]
Constataremos isso na mãe de Kirikou, primeira personagem da qual falaremos. Algumas vezes definida como dócil, silenciosa e, justamente por isso, fraca é, na verdade, a mulher que define todo o enredo, a que produz o Herói, não somente por tê-lo gerado, mas pela maneira como se refere a ele.
Desde o momento do parto, a mãe ordenou que ele nascesse e se lavasse sozinho, dando mostras de que o Herói, para sê-lo, precisa ser independente. A própria independência que ela adquirira, mesmo fazendo parte de uma sociedade com papéis estritamente bem definidos entre o homem e a mulher. Daí, podemos extrair, também, que vivendo sozinha e seu marido tendo sido “roubado” pela feiticeira, ela desenvolveu atitudes ditas “masculinas”, como a administração de sua tenda, de seu filho, sem interferências diretamente externas.
Poderíamos dizer que ela não se preocupava com a opinião alheia. O modo com que pensava e agia demonstrava a inteligência e a sapiência obtida pela experiência de vida. Era preciso sobreviver, tornar-se uma Heroína, com todas as características de uma mulher forte, contrariamente ao que se observa, por leigos, num primeiro olhar.
Assim, a personagem identifica-se com as mulheres do dia-a-dia, ditas “comuns”, que cuidam da casa, preparam a comida, educam os filhos com sabedoria, calma, interiorizando os acontecimentos para que deles tirem a lição de vida. Sensatas e decididas. Mulheres abandonadas pelos cônjuges, viúvas, sozinhas ou, ainda, as “viúvas de maridos vivos”[4]. Todas que, de uma forma ou de outra, não entregam-se às adversidades, mas as controlam para que sejam vencedoras.
Até na hora do nascimento de Kirikou, ou do instante em que pensou que ele morreu, o semblante da mãe era sereno e firme. Além disso, a primeira pessoa de quem ela falou para o filho foi de Karabá, a feiticeira, mostrando que não temia os inimigos e insinuando que ele era o “enviado” para salvar a aldeia. A idéia geral é que ele tem uma missão, podemos compará-la à de Jesus[5], onde a reação materna não difere muito da de Maria, no intuito de passar a idéia de que as mães devem, sempre, usar de sensatez, sabedoria e aceitação, sem esquecer, ainda, a preciosidade do silêncio.
Kirikou, logo após a vir ao mundo, questionou a mãe sobre seus familiares, todos homens, não interessou-se pelas mulheres, já instigando o conflito da obra: os homens que partem combater a feiticeira, são “comidos” por ela e nunca mais retornam aos seus lares.
A fortaleza e a capacidade de conduzir da mãe são inabaláveis, foi ela quem o informou sobre tudo o que acontecia na aldeia (transmissão da cultura geral pela oralidade) e quem lhe mostrou os problemas, como a fonte maldita. Ela o levou consigo, na ocasião da entrega do ouro à feiticeira, e não interferiu quando ele questionou a “Venerada”, ainda que outras mulheres os reprovassem. Mesmo no momento em que ela estava inclinada, por terra, defronte ao poder, demonstrou, por seu porte e movimentos, um ar superior em sabedoria. Indicou, também, o caminho que devia ser traçado até e além dos domínios de Karabá.
As mulheres do vilarejo não tinham mais esperança e mostravam-se rendidas[6], somente a mãe de Kirikou não se deixava levar, no entanto, sugeriu isso em silêncio, revelando-se tão grande e imponente quanto a “Poderosa”.
Observamos, claramente, no decorrer da obra, o sentido sexual translúcido nas ações. Antes de partirem para entregarem as riquezas, o bebê pede à mãe para ir junto, ao que ela responde: “–Você já é como os homens: quer ver Karabá, a feiticeira.” Demonstrando ser algo, estritamente, normal. Anteriormente, ele fora ao encontro de seu tio, com a intenção de ajudá-lo. A mãe, evidenciando que isso já estava traçado (porque ele é um homem) e querendo fazer valer o livre arbítrio, não o impediu.
Não obstante, quando o pequeno encontrou o tio, último homem da aldeia, que caminhava para encontrar-se com Karabá, escutou a afirmação de que o que iria acontecer não era algo para as crianças. É possível interpretarmos esse acontecimento como o ato sexual, que é o que se pode entender nas entrelinhas de todo o texto. Kirikou mostrou ter compreendido isso quando, face ao monstro da fonte, pensou em pedir ajuda ao tio, mas reconsiderou sua idéia, afirmando que ele não podia passar pela “porta estreita” para entrar na gruta, porque ele era grande, isso devia ser feito por alguém que é pequeno. Evidentemente, só uma criança livre de desejos poderia vencer o mal.
É num momento de repouso do menino que a mãe instigou uma reflexão sobre a maldade e o poder, fazendo com que o filho conhecesse a idéia estrutural e política da sociedade e da humanidade, em que, normalmente, o mais poderoso oprime fazendo com que os outros sofram.
Diante deste contexto, era preciso um coração puro, uma criança, para não ceder aos encantos de tal dama[7]. A mãe acreditou na capacidade de Kirikou, em sua astúcia, pois, além de tudo, ela o fizera assim e sabia que a união de um coração imaculado e da sabedoria dos anciãos (no caso, seu avô) podia fazer “milagres”. Foi, justamente, o portador de tal sabedoria que veio desmistificar a personagem de Karabá, possivelmente, porque ele havia ultrapassado a idade onde os desejos carnais falam mais forte, podendo, desta forma, ver as coisas de maneira clara, tais quais elas são. Mesmo quando afirmou que ela era malvada, houve uma explicação para o fato.
Outro tipo de mulher, apresentado na obra, é a que se diz esperta, mas não se mostra muito inteligente. Essa personagem aparece sempre dando opiniões incabíveis, maus conselhos, reclamando, ou tentando enganar, como no caso da recolhida do ouro. Entretanto, foi ela quem anunciou a boa nova de que a água voltou, confirmando a característica de quem fala muito: nem sempre fala coisas sábias ou aproveitáveis, mas está, constantemente, bem informado para poder passar adiante.
Tal personagem apresentou-se no primeiro lugar da fila, no momento de entregar o ouro para a feiticeira, contrariamente à mãe do Herói, posicionada em último lugar. Essa imagem simboliza a humildade, vista como fonte de sabedoria, contra a falsidade de quem está enganando mas não quer ser desvelada. “Assim, pois, os últimos serão primeiros e os primeiros serão últimos.” (Bíblia Sagrada, Mat. 20, 16).
Finalmente, o terceiro tipo de mulher, é Karabá. Qualificada, nas falas, como esplêndida, venerada e honrada, porém, mostrando-se autoritária, ditadora e malvada. Quanto ao físico, era bonita e vaidosa, cheia de ornamentos. Exatamente as características atribuídas às prostitutas, que devem estar sempre belas; são descritas, pelos amantes, como esplêndidas e honradas, mas pela sociedade em geral (ou mesmo por eles, quando encontram-se em público), são tachadas de malvadas por “roubarem” os homens das mulheres, e de “autoritárias” porque fazem deles “o quem bem querem”.
Temida, robotiza os homens, fazendo deles objetos que obedecem. Kirikou podia afrontá-la, pois sabia que, sendo pequeno, seria capaz de entrar onde nenhuma outra pessoa poderia. Ademais, ele não a temia estando ciente de que quanto mais o povo tinha medo, mais ela tornava-se poderosa. Não se pode dizer que ele é uma criança, mas que se fez assim para cumprir seu desígnio. Como prova, temos sua transformação no final da história.
Se considerarmos o fundo sexual da temática, podemos afirmar que ela não gostava das crianças porque sabia que seu poder sobre elas era limitado; da mesma forma, detestava as mulheres, pois julgavam-na atrapalhando suas relações com os homens. Desprezava os seres masculinos, por lhe terem “feito mal”: temos, aí, a idéia implícita de que fora violentada. Os homens “fincaram-lhe um espinho” que a fazia sofrer imensamente, ao ponto dela não ter coragem de pedir para alguém arrancá-lo. Dificuldade comparável às que os seres humanos têm para tocar nas feridas emocionais.
O avô explicou que ela não era uma feiticeira, mas alguém que tem uma reação provocada por uma ação. Essa reação não era boa porque a ação também não fora. A partir do momento em que ela se livrou do sofrimento, pôde voltar a ter bons sentimentos, uma mulher livre, sem problemas com o sexo oposto.
Para que isso acontecesse, temos um ponto importante a considerar: a cólera de Karabá diante do roubo das jóias implicou na decisão de primeiro recuperá-las, para depois preocupar-se com Kirikou. Esse ato deu forças à futilidade, à vaidade e à avareza, sentimentos que a emboscaram.
Ao livrar-se do mal, ela gritou, com tal intensidade que se fez escutar na aldeia. Esse grito representa o de todas que foram, de um jeito ou de outro, oprimidas pelos homens, violentadas, que carregaram, durante anos, um espinho nas costas, revoltando-se, às vezes, mas sem ter a coragem de dar o verdadeiro grito de liberdade. Aquele que veio romper o silêncio das mulheres e transformar a opressão, o ódio, em amor. Elucidando a vitória, ainda que depois de muita angústia.
Foi, nesse momento, que Karabá encarnou a verdadeira feiticeira, ela não tinha poderes sobrenaturais, todavia, o feitiço era o amor e, através dele, por um beijo, transformou Kirikou em um homem. Antes, contudo, ela resistiu, dizendo que sendo ou não feiticeira, não seria empregada de ninguém. O apaixonado contestou dizendo que não faria dela uma empregada, e ela retruca falando que todos os homens dizem isso antes de casar. O menino a convenceu de que era diferente dos outros homens e cresceu, indicando, nada mais, nada menos, que perdeu sua virgindade e que, pelo amor, pôde curá-la da dor, ensinando-lhe como é uma relação sadia entre sexos opostos. Como recompensa ou, simplesmente, conseqüência deste amor que fez as flores desabrocharem, ela “cuidou” dele, ornando-o, e ele a apresentou aos seus.
O último conflito foi a aceitação na comunidade, da mesma forma que é difícil para uma prostituta, ou qualquer mulher que fuja dos padrões estabelecidos pela sociedade, ser aceita. As pessoas não reconheceram o filho da aldeia e a mãe retomou seu papel vindo identificá-lo. A decisão do final feliz foi dela. As outras mulheres demonstraram sua revolta tentando matar Karabá e, somente, pararam quando viram os homens se aproximando. Elas recuperaram o que estava perdido. Os “filhos pródigos” voltaram para casa favorecendo o retorno da paz.
Concluiremos dizendo que as mulheres tiveram um papel fundamental durante toda a obra e, sobretudo, no início e no final da narração, fazendo com que as ações fossem, sutilmente, propiciadas por elas. Mãe e feiticeira foram o segmento uma da outra, completaram-se. Kirikou foi, meramente, o laço entre as duas e foi isso que o transformou em Herói. Ele libertou todos os outros homens porque “conquistou” para si, Karabá.
Referências:
Bíblia Sagrada. Ed. Ave-Maria, 131ª Edição, São Paulo, 1999.
HUNDZINSKI DAMASIO, Celuy Roberta. “Identidade, Igualdade, Diferença – o olhar da história” In: Revista Espaço Acadêmico, n° 79, dezembro de 2007.
HUNDZINSKI DAMASIO, Celuy Roberta. “Mulheres Fazendo a História” In: Revista Espaço Acadêmico, n° 58, março de 2006.
OCELOT, Michel. Kiriku e a Feiticeira, Ed. Paulinas Multimídia. Cultifilmes França/Bélgica, São Paulo, 2002
PERROT, Michelle. Les femmes ou les silences de l’histoire, Paris, Flammarion, 1998.
* Doutoranda em Literatura na Sorbonne e em Filosofia na Université de Marne-la-Vallée
[1] A resenha deste livro, intitulada Mulheres Fazendo a História, pode ser encontrada na Revista Espaço Acadêmico - n° 58 - março de 2006. Também pode ser consultado o texto Identidade, Igualdade, Diferença – o olhar da historia na REA – n° 79 – dezembro 2007.
[2] Daí a origem da fama da mulher como “faladeira” ou, até mesmo, “fofoqueira”.
[3] Tradução nossa.
[4] Esposas daqueles maridos que existem mas nunca estão presentes.
[5] Essa semelhança com a história bíblica confirma-se mais ao final do filme, quando o pequeno engana a serpente “vencendo-a”.
[6] Uma mulher, no episódio da canoa, deixa a faca cair (é Kirikou quem a pega pra ir salvar as crianças). As mulheres, em cenas similares, sempre mostram-se inertes diante das maldades.
[7] Podemos observar, também, que o velho habitante da aldeia, apesar de temeroso, não está sujeito à Karabá, provando mais uma vez que este “feitiço” pode ser traduzido como “sexo”, excluindo crianças e idosos.
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