30/03/2010

Os perigos de uma crítica maniqueísta por KABENGELE MUNANGA


TENDÊNCIAS/DEBATES (Folha de São Paulo, 26 de março de 2010)

POR QUAL motivo o STF promoveria uma audiência pública antes de votar matéria de sua competência, como se seus ministros não tivessem já opinião construída sobre a constitucionalidade ou a inconstitucionalidade das cotas "raciais"? Penso que o Supremo teria partido do suposto de que as leis sozinhas não resolvem todos os problemas de uma sociedade e que era preciso reunir opiniões e pontos de vista provindos de diferentes setores.

É no âmbito dessa audiência pública que se coloca o pronunciamento do senador Demóstenes Torres (DEM-GO). Os argumentos que defendeu provocaram reações, interpretações e comentários críticos que o geógrafo Demétrio Magnoli, em artigo neste espaço ("O jornalismo delinquente", 9/3), qualificou como delinquência, amnésia ideológica, falsificação da história, manipulação, ignorância etc.
Conhece-se a facilidade sem limites que o geógrafo Demétrio Magnoli tem para atribuir palavras de sua conveniência a seus adversários. Mas o que disse exatamente o senador? Em seu pronunciamento, deixou claramente explícita sua posição contrária às cotas "raciais". Afirmou que não aconteceram sequestros e capturas de escravos porque foram os próprios africanos que o fizeram. Eles forneciam escravos não apenas aos mercados ocidentais e americanos, mas bem antes ao mundo árabe.
O senador disse ainda que os donos de escravos não eram somente brancos ou ocidentais, mas também africanos ou negros. Acrescentou à sua peça acusatória que os abusos sexuais cometidos contra as mulheres negras durante o regime escravista eram algo consentido. Ademais, criticou a categoria censitária que soma negros e mestiços numa única classificação e aproveitou para alfinetar os efeitos manipuladores das pesquisas quantitativas do IBGE e do Ipea. Chegou até a negar a existência no Brasil do racismo estrutural, reiterando a posição já antiga do racismo socioeconômico embutido no mito de democracia racial.
Na minha interpretação, o senador deixou claro que o Estado brasileiro não teria nenhuma obrigação de compensar os afrodescendentes por meio de políticas de ação afirmativa pelos crimes cuja responsabilidade cabe em parte aos próprios africanos que venderam seus "irmãos" mundo afora. Não surpreende que o senador tenha uma posição contrária.
No entanto, o conteúdo de seus argumentos, pela posição que ocupa, causou estranhamento e mal-estar político. Afirmar publicamente que a violência sexual contra a mulher negra durante o regime escravista era consentida é ignorar o contexto de assimetria e de subalternidade em que esses abusos eram cometidos. Afirmar que não aconteceram sequestros e capturas durante o tráfico negreiro é chocante para quem conhece um pouco dessa história. Todos os presentes à audiência pública, pelo menos os do campo oposto, ficaram horrorizados com as palavras do senador.
Os termos "negro", "africano", "europeu" e "branco" remetem ao mesmo contexto, pois os traficantes africanos ou reinos africanos eram negros, e os traficantes europeus eram brancos. Não vejo nenhuma manipulação ao trocar um termo por outro, a não ser na visão deturpada de alguns.
Os fatos históricos não são de todo incorretos, mas o que importa é a condenação moral da escravidão, externa ou interna, independentemente da origem geográfica ou "racial" do traficante. Ninguém inocentaria a Alemanha nazista pelo fato de o Holocausto ter contado com colaboradores europeus e traidores judeus.
Seria bom reafirmar que nenhum historiador negaria a participação de alguns reinos africanos no tráfico negreiro. Mas isto é certo: nenhum navio negreiro era propriedade dos africanos e nenhum traficante africano atravessou mares e oceanos para vender seus "irmãos" no exterior. Ao dizer isso em outros termos, o professor Luiz Felipe de Alencastro não está tendo nenhuma amnésia ideológica, como o sugere o geógrafo Demétrio Magnoli.
A demanda social das políticas de ação afirmativa não se fundamenta nesse passado escravista evocado pelo senador. Não se baseia na lógica da reparação coletiva em comparação com à que foi concedida ao Estado de Israel e aos israelitas vítimas das vexações nazistas.
Ela se fundamenta, do meu ponto de vista, sobretudo na situação estrutural das relações entre brancos e afrodescendentes que, segundo estatísticas de IBGE e Ipea, apresenta um tão profundo abismo acumulado em matéria de educação que jamais poderá ser reduzido apenas pelas políticas macrossociais ou universalistas.

KABENGELE MUNANGA, antropólogo, é professor titular da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. É autor, entre outras obras, de "Origens Africanas do Brasil Contemporâneo: Histórias, Línguas, Culturas e Civilizações" e "Rediscutindo a Mestiçagem no Brasil. Identidade Nacional versus Identidade Negra".


Nenhum comentário: